Jussara Lucena, escritora

Textos

A mudança

No final do ano de 1971, com oito anos de idade, mudei-me com minha família da cidade de São Paulo para uma cidade do interior, na região sul do Paraná. Naquele ano éramos eu, meus pais e outros três irmãos homens. Fizemos uma longa e inesquecível viagem de ônibus. Eu já fizera o mesmo percurso de trem, mas como era muito pequeno, poucas lembranças restavam.
Saímos de casa num comecinho de noite, apertados a borda do taxi, um corcel, rumo ao Terminal Rodoviário da Luz. Na rodoviária olhávamos admirados para o teto da construção, de bela arquitetura, formado por quadrados coloridos, quase translúcidos. Depois, embarcamos num ônibus prateado rumo ao sul.
Numa das paradas, na cidade de Registro minha mãe desceu do ônibus com as quatro crianças para ir ao banheiro, meu pai permaneceu a bordo, num sono profundo. Naquela ocasião meu pai vestia uma camisa verde, com dois bolsos na altura do peito, fechado por botões e nas mangas um detalhe, uma espécie de presilha que começava acima do ombro. A camisa era parecida com uma peça de uniforme profissional.
Minha mãe me disse:
- Guarda o número do ônibus para não nos perdermos!
Lidar com quatro crianças, menores de oito anos não era nada fácil e, numa distração da mãe, um dos meninos, meu irmão de sete anos desapareceu. Foi um desespero, havia muita gente, dezenas de ônibus parados na madrugada. Todos pareciam iguais.
Corríamos sem saber para onde e com a preocupação de não perder o ônibus, que tinha hora certa para partir. Fomos até o restaurante olhando mesa por mesa, até que num balcão, onde os motoristas faziam seu lanche, avistamos meu irmão agarrado ao braço de um desconhecido: um dos motoristas.
Minha mãe, num misto de alivio e desespero, puxou o menino pelo braço e gritou:
- Meu filho o que você está fazendo aqui? Quer matar a sua mãe de susto?
- Mãe, eu estou aqui com o pai! – respondeu ele, sonolento.
Foi uma gargalhada só. Um filho saído do nada, nenhum dos motoristas perdoou o colega, que meio sem jeito ainda fez um carinho na cabeça do garoto. Minha mãe ficou mais envergonhada ainda. Saímos correndo e chegamos no momento em que o ônibus fechava a porta.
- O que é isso minha senhora, está atrasando todo mundo. Que falta de responsabilidade – bradou o motorista.
Minha mãe ficou sem reação. Ainda bem que meu pai ainda dormia. Cansados, todos pegamos no sono, menos minha mãe.
Depois de uma manhã esperando na rodoviária de Curitiba, seguimos para o nosso destino final em mais um trajeto de ônibus. Muita gente entrou e saiu. O mais curioso para todos nós foi quando num trecho da viagem pessoas começaram a entrar carregando sacos de alimentos e bichos como galinhas, coelhos e até um porquinho. As pessoas eram simples, alguns agricultores que cheiravam a suor e fumo. Alguns homens picavam o fumo e enrolavam seus cigarros de palha ali mesmo.
Chegamos quando os últimos raios de sol iluminavam a praça em frente à rodoviária e coloriam a água da fonte que enfeitava a cobertura do coreto. Ao fundo o céu com o horizonte marcado por nuvens avermelhadas, banhadas pela mesma luz do entardecer. A direita uma enorme e bela estação ferroviária. No centro do prédio passava o trilho do trem que dividia as duas cidades, os dois estados.
Duas de nossas primas nos esperavam, sentadas em um banco de madeira. Pegamos as malas e seguimos a pé, com elas, rumo à casa de uma de nossas tias, local onde passaríamos a morar, pelo menos por algum tempo.
Tive o meu primeiro contato com o rio Iguaçu e com a ponte da estrada de ferro. Meu pai comentou que quando ele era mais moço trabalhou no reforço daquela ponte, um amontoado de aço pintado em alumínio, marcada por grandes rebites e apoiada sobre pilastras formadas por blocos de pedras.
Minha mãe lembrou que no passado a ponte não tinha passarela e todos precisavam caminhar sobre os dormentes. Certa vez, quando ela empurrava sua bicicleta sobre a linha, o trem entrou na ponte. Ela, muito pequena, não sabia o que fazer. Não queria abandonar sua bicicleta, paralisou-se e começou a gritar. Alguns homens que trabalhavam na manutenção da ponte correram para auxiliá-la e por um triz não foi atropelada junto com sua bicicleta, que também foi resgatada.
O rio, largo e caudaloso era ruidoso e assustador. Algumas das barras de ferro fixadas na lateral da passarela pareciam não conseguir proteger da queda, crianças como eu e meus irmãos. Agarrei-me bem firme na mão de uma das primas.
Minhas primas tinham um sotaque diferente, reforçando a vogal “e” no final das palavras, tipo leite quente. Nós costumávamos trocar o “e” pronunciado ao final das palavras pelo “i”. Também estranhamos alguns termos usados pelo pessoal do Sul.
- Tia, quem é este piá lindo? – perguntou minha prima mais velha, apontando para o meu irmão mais novo, que ela ainda não conhecia.
- Piá? O que é isto? – perguntei, rindo da expressão.
- Piá é a mesma coisa que guri – respondeu a prima mais nova.
- Guri? Continuo não entendendo.
- Lá em São Paulo as pessoas chamam os meninos de moleque. Aqui eles chamam de piá ou de guri! – explicou minha mãe.
Todos gargalharam. Tivemos que nos acostumar com um bocado de palavras até então desconhecidas. Foram muitas novidades e diferenças encontradas. O lugar também era muito diferente da cidade cinzenta em que morávamos.
A cidade era circundada por diversos montes, com matas repletas de araucárias. A maioria das casas era feita em madeira. Havia poucas estradas pavimentadas e as ruas dos bairros eram de chão batido, cobertas com areia e seixo rolado ou, quando calçadas, usavam-se paralelepípedos de basalto. Quase nenhuma tinha iluminação. A estrada de ferro era um referencial e sinônimo de progresso, transportando as cargas da Capital da Madeira para todos os cantos do Brasil e do exterior.
As pessoas ainda faziam sua própria comida a base dos grãos comprados a granel nas bodegas, pequenos armazéns, onde se encontrava também, na seção de armarinhos, os tecidos e aviamentos que as mães ou costureiras utilizavam para confeccionar a roupa da família. Faziam-se fornadas de pão, assadas no forno a lenha - feito de tijolos - ou no fogão a lenha, normalmente colocado na cozinha da casa.
Mesmo existindo açougues, a grande maioria das famílias criava bois, porcos ou galinhas nos fundos de casa para transformar na carne que consumiam. Matar os animais, limpá-los e preparar os cortes, um verdadeiro ritual.
Alguns homens ainda usavam chapéus feitos em feltro ou palha. A moda era usar camisas Volta ao Mundo, fabricadas em um tecido sintético, o nylon. Deixavam todos com um mau cheiro tremendo. As mulheres costumavam usar vestidos e algumas arriscavam usar um eslaque, palavra aportuguesada do inglês slacks, calças feitas em Tergal.
Os habitantes do lugar, na sua maioria, eram descendentes de colonos poloneses, ucranianos, italianos e alemães e de outras etnias que colonizaram a região. Por isso, em volta da cidade existiam as chamadas colônias e os faxinais.
Quase não havia água encanada. Toda casa tinha um poço e para tirar água se usava em muitas delas corda e balde ou uma bomba manual. Para suportar bem todas as estações do ano, cada casa possuía um bom fogão a lenha e uma chaminé, que espalhava fumaça ao sabor do vento. Como os aparelhos de televisão eram raros, a volta do fogão era o ponto de encontro da família e da vizinhança. As conversas eram sempre acompanhadas por um café quente ou uma cuia de chimarrão. Perto do fogão também ficava o rádio, entretendo ou fazendo chegar mais rapidamente as notícias. Outras novidades chegavam com os Correios, nas cartas ou nos telegramas. Telefones eram raros.
Havia muita religiosidade e era obrigatória a participação na missa no sábado à noite ou no domingo pela manhã, na pequena capela do bairro. Novenas e romarias também eram comuns e envolviam quase toda a comunidade.
Algumas profissões eram comuns, como o ferreiro e o sapateiro que à época fazia muita meia sola e os sapatos duravam muito tempo. Quando se precisava de uma roupa para uma ocasião especial, recorria-se ao alfaiate, no caso do homem e às costureiras, para as mulheres.
Eu acreditava que a nova cidade era o paraíso das bicicletas, pois em cada casa do bairro as pessoas da família, desde os pequeninos até os mais velhinhos, possuíam uma. Usavam-se muitos acessórios nelas: capa para o selim, buzina, farolete movido a dínamo, pequenas peças plásticas soltas nos raios, cata-ventos, refletores – os chamados olhos de gato. Enfim, quanto mais enfeitadas, melhor.
O clima era muito diferente daquele da Terra da Garoa. O mesmo dia passava pelas quatro estações do ano. Os invernos eram muito rigorosos, com geada e até neve. Nos dias frios, por causa das águas do rio que envolvia a cidade, a neblina predominava durante a manhã e só depois do meio-dia o sol aparecia, timidamente. As crianças divertiam-se com a água gelada da névoa que acumulava sobre as sobrancelhas e com o bafo quente que saia da boca. Os lábios partiam e era preciso muita manteiga de cacau para aliviar a dor. Era interessante quebrar o gelo que se formava na rua sobre as poças d’água durante a madrugada. Para se garantir o café, precisávamos deixar água numa vasilha durante a noite, pois a água congelava na tubulação.
Como as ruas tinham pouco movimento, as brincadeiras eram feitas nelas mesmo ou num dos muitos campinhos de futebol espalhados pelo bairro. Diversão de menino era jogar futebol, bolinha de gude, bilboquê, pião, soltar pandorga ou caçar passarinho. Os mais ousados nadavam no rio, sem que seus pais soubessem. As meninas desde cedo eram preparadas para atuar como donas de casa, brincando de bonecas e imaginando suas casinhas, fazendo comidinhas. Algumas, mais ousadas, brincavam com os meninos.
Na TV, com imagens em preto e branco, chegava um pouco mais das informações do progresso, com as informações do Milagre Brasileiro incentivado pelo Regime Militar implantado no País e divulgado, por exemplo, pelo programa Amaral Netto o Repórter na TV Globo, uma espécie de Globo Repórter dos Anos 70.
Assistiam a alguns filmes e seriados que as crianças de hoje nunca ouviram falar. Os heróis eram o Nacional Kid ou o Vigilante Rodoviário. Imitávamos os mocinhos dos filmes de faroeste e nos apaixonávamos pela Jeannie que é um Gênio ou pela Feiticeira.
No esporte admirávamos a Seleção de 70 e parávamos em frente à tela para assistir as vitórias do Emerson Fittipaldi na Fórmula 1, pilotando a sua Lotus.
A nova morada, a casa da minha tia mais velha, era feita de madeira, pintada em amarelo, com janelas e venezianas em verde. Na frente da casa, no oitão, havia uma pequena capela com a imagem de Nossa Senhora. Na janela da cozinha, ao lado de um fogão a lenha eu passava um bom tempo do dia esperando a passagem das longas composições de vagões e de suas grandes máquinas.
Podia-se sentir o cheiro da fumaça expelida pela grande locomotiva negra ou o rugir das máquinas mais modernas, movidas a óleo diesel. Eu sentia nome meu corpo o trepidar dos dormentes, tapava o ouvido e gritava junto com o apito das máquinas. Mais de perto, na cabine das locomotivas havia as inscrições RVPSC (Rede de Viação Paraná - Santa Catarina) e RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.). As marcas representavam a grandeza de empresas ferroviárias, tão importantes para o País naquela época e que trazia mais romantismo para a vida das pessoas.
Em frente à casa moravam os meus outros tios e seus três filhos. Num pequeno terreno cultivavam a terra e criavam algumas vacas leiteiras e coelhos. O marido da minha tia mais nova era mecânico de automóveis na oficina de uma das três grandes empresas fabricantes de veículos do Brasil na época.
O primo caçula, três anos mais velho do que eu era o mais próximo, em função da idade e foi o nosso companheiro em grandes aventuras e descobertas, comuns na infância de qualquer pessoa. Ele além de muito arteiro, era também criativo, um inventor, com muitas habilidades manuais. Os garotos do bairro o chamavam de Beronha. Eu preferia chamá-lo pelo nome.
Todos os dias, eu e meu primo, levávamos o almoço para o meu tio, que mal tinha tempo para as refeições e vivia metido embaixo de um automóvel, com o macacão e as unhas sujas de graxa. O caminho era delineado pela estrada de ferro, num labirinto de vagões de todos os tipos para os mais diversos produtos. Num emaranhado de linhas, chaves de reposicionamento de vias, exercitávamos nossas fantasias, como se viajássemos a bordo dos trens.
Entre as habilidades de meu primo, apesar da pouca idade, estava a de tecer redes de pesca. Não só as tecia como também fabricava as boias, os moldes e as chumbadas dos apetrechos de pescaria. Acontece que para fazer chumbada era preciso chumbo, que depois de derretido, posto no molde e resfriado tomava a forma desejada. Na inocência de crianças encontrávamos nas portas dos vagões uma de nossas fontes supridoras do tão procurado metal. Não imaginávamos a dor de cabeça dos pobres ferroviários tendo que explicar a falta dos lacres das portas quando chegavam ao seu destino.
Foi nesse meio que passamos a maior parte de nossa a infância e adolescência e assim, tivemos muitas histórias para contar.

Texto publicado na coletâne Família, doces lembranças da Perse.

Adnelson Campos
26/11/2019

 

 

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